Falta de remédio para transtorno bipolar é calamidade, dizem psiquiatras.
Desde o início deste ano, pacientes com transtorno bipolar estão com dificuldade de encontrar carbonato de lítio nas farmácias e serviços públicos de São Paulo e de diversas outras partes do país. A substância tem efeito protetor contra as crises de depressão grave ou mania (euforia) que caracterizam a doença, além de ter papel essencial na prevenção do suicídio.
A ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) diz que a situação é "calamitosa" e que está cobrando respostas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), além de apoio de órgãos de controle e fiscalização da saúde. A instituição explica que o carbonato de lítio não pode ser substituído para muitos pacientes, "sob pena do possível agravamento dos quadros psiquiátricos e consequente aumento do número de casos de suicídios no Brasil, da procura por serviços de emergência, além da necessidade maior de internações em um cenário de escassez de leitos".
Reclamações de médicos e pacientes nos Caps (Centros de Apoio Psicossocial) e UBSs (Unidades Básicas de Saúde) têm sido frequentes. Nesta quinta-feira (5), a Prefeitura de São Paulo informou, por meio da Secretaria Municipal da Saúde, que o Carbonato de Lítio 300 mg está em falta devido a ausência de matéria-prima dos fabricantes. "Há um processo aberto para compra emergencial pela administração municipal, onde as empresas interessadas em participar devem apresentar suas propostas até o dia 10 de março", acrescentou.
A Abrata (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos) tem recebido mensagens de pacientes de todas as regiões do país desde meados de janeiro, primeiro sobre a falta do carbonato de lítio ER de 450 mg, e depois sobre o de 300 mg. A associação não chegou a fazer um levantamento, mas garante que foram inúmeras as reclamações, telefonemas e comentários nos grupos de pacientes e de familiares. "Circulam nesses grupos presenciais cerca de 90 pessoas por semana. E praticamente 100% delas fazem uso do carbonato de lítio", declara a vice-presidente Neila Campos.
A tradutora Lilia Loman, que utiliza o medicamento há 28 anos, procura lítio nas farmácias das principais redes de São Paulo, sem sucesso, há cerca de um mês. Apesar de ter contatado diversas vezes o SAC do fabricante do Carbolitium, da Eurofarma, e ter sido informada que o de 300 mg estava disponível, ela não havia conseguido nada até esta quinta-feira (5). Em uma das ocasiões, recebeu a indicação de uma farmácia que tinha apenas uma caixa, mas logo descobriu que estava reservada para outro comprador. Lilia também não encontra genérico, nem similares de outros laboratórios (Carlit e Litcar).
"A busca tornou-se uma parte indesejável da rotina, não só minha, mas também de familiares e amigos", reclama. Ela ainda tem algumas unidades do remédio, "mas sem previsão de quando essa falta realmente durará, a preocupação é enorme". A única vez que ficou sem o carbonato de lítio foi durante a gravidez, há dez anos: "Foi um período extremamente difícil, uma recaída após muitos meses de estabilidade, com sintomas exacerbados pela falta de medicamento", recorda. Ela teve insônia, depressão, ímpetos de agressividade até ideações suicidas.
O que dizem os laboratórios
Rastrear a origem do problema não é nada fácil. A reportagem entrou em contato com os três laboratórios que comercializam o carbonato de lítio (Eurofarma, Hipolabor e Biolab), e dois deles esclarecem que a escassez recente se deve à dificuldade de aquisição de matéria-prima junto ao fabricante de insumos, cujo nome não é revelado.
A Eurofarma confirma o desabastecimento do Carbolitium CR 450 mg, mas diz que a produção havia sido retomada e que os estabelecimentos de todo o país começariam a ser abastecidos em março. A empresa enfatiza que existem outras alternativas terapêuticas no mercado, como o Carbolitium 300 mg. "A classe médica está sendo comunicada e é importante que o paciente procure seu médico de confiança para efetuar a substituição e ajustes posológicos necessários". Assim como Lilia Loman, a reportagem ligou para algumas farmácias da capital, como Onofre e Ultrafarma, e não encontrou o produto de 300 mg, nem da Eurofarma, nem de outros laboratórios.
Também procurada, a Hipolabor, de Minas Gerais, disse que "a previsão é de que todos os medicamentos necessários sejam fornecidos até o mês de abril. Ainda neste mês, a meta é produzir 20 milhões de doses e, até o fim do próximo mês, devem ser produzidas mais 30 milhões de doses".
Já a Biolab Genéricos, que diz abastecer principalmente a rede privada, afirma que não está com problemas de produção de carbonato de lítio. "Pelo contrário, a empresa triplicou sua oferta de produtos genéricos em fevereiro de 2020 em relação ao mesmo mês do ano passado: 22 mil caixas de 50 unidades (fev 19) e 69 mil caixas de 50 unidades (fev 20)", mencionou na nota, destacando que o crescimento de oferta ocorreu "mesmo em função do explosivo aumento dos custos de matéria-prima, que são dolarizados".
A reportagem recebeu apenas algumas pistas sobre o problema de abastecimento: foi informada de que a matéria-prima do medicamento carbonato de lítio é nacional, vem de um único fornecedor, e que os laboratórios estão proibidos de importar de outros países.
O que diz a Anvisa?
A Agência esclarece que não há um instrumento legal que impeça laboratórios farmacêuticos de retirarem medicamentos do mercado. Mas explica que a regulamentação exige que as empresas comuniquem a descontinuação definitiva ou temporária da fabricação ou importação de medicamentos com pelo menos 180 dias de antecedência. Quando o problema é decorrente de algum imprevisto, a comunicação deve ocorrer em no máximo 72 horas, e o desrespeito à norma resulta em penalidades.
Após consultar o banco de dados sobre o carbonato de lítio, a Anvisa informa que não havia nenhuma notificação, mas lembrou que o mercado de medicamentos apresenta flutuações relativas a procedimentos de importação, estocagem, cadeia de distribuição etc, o que pode afetar os pontos de venda. Veja o que diz o restante da nota enviada pela agência:
"De acordo com nossos bancos de dados havia estoque do medicamento nas distribuidoras em 01/2020. Diante da denúncia, a ANVISA notificou o laboratório para esclarecimentos. Em resposta, o laboratório informou que, por ser um produto de alta rotatividade, não existia naquele momento estoque disponível, e esclareceu que as ações operacionais para retomada da produção estavam avançadas para que o reabastecimento do mercado ocorresse no mês de março de 2020. Informou, também, que o medicamento Carbolitium CR® (carbonato de lítio) 450 mg 30 comprimidos de liberação prolongada está passando por um desabastecimento momentâneo, em função de intercorrências no processo produtivo. No entanto, existem alternativas terapêuticas no mercado, como Carbolitium® 300 mg. A classe médica está sendo comunicada para que os tratamentos não sejam prejudicados. Estamos orientando os pacientes que procuram a Anvisa sobre esse tema que entrem em contato com o médico para o ajuste da medicação até que a situação se normalize. Diante de informação de que a empresa não notificou a descontinuação, foram tomados os procedimentos administrativos para apuração da irregularidade apontada." Para a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que também denuncia a falta não só de lítio, mas também do antidepressivo cloridrato de imipramina, os medicamentos não estão sendo produzidos pelos laboratórios privados e, infelizmente, ainda não existem nos laboratórios do governo brasileiro. "O desabastecimento ou a descontinuação desses medicamentos, que não possuem patente e são muito baratos, se produzidos pelo governo custariam centavos para a comercialização, configura crise na assistência médica, com risco de recaídas imediatas de graves transtornos mentais", opina a instituição, em carta divulgada à imprensa.
O farmacêutico e bioquímico Dirceu Raposo de Mello, que presidiu a Anvisa de 2005 a 2010, também defende que o governo aproveite a estrutura dos laboratórios públicos para corrigir casos de escassez gerados pela falta de interesse das farmacêuticas em drogas que, com o passar do tempo e aumento da concorrência, deixam de gerar lucro ou até causam prejuízo. "Quando há essa situação será que não vale a pena internalizar a produção?", provoca.
O ex-presidente da Anvisa cita outros cenários parecidos e perigosos, como a recente falta de penicilina benzatina, fármaco antigo que ainda hoje é usado para combater a sífilis, inclusive em recém-nascidos. Apenas quatro laboratórios produzem a substância para o mundo todo, justamente por ser antiga e barata. Isso coloca o Brasil, bem como outros países, em situação de extrema vulnerabilidade numa época em que autoridades apontam o aumento descontrolado dessa infecção sexualmente transmissível (IST).
"Penicilina da saúde mental"
O psicoterapeuta e instrutor de educação médica Mark Ruffalo, da Universidade da Flórida Central, nos EUA, é um dos profissionais que compara o carbonato de lítio ao antibiótico que revolucionou a história da medicina. Embora as propriedades terapêuticas da água rica em sais de lítio sejam conhecidas desde a Grécia antiga, foi só perto dos anos de 1950 que o tratamento para a então chamada "doença maníaco-depressiva" foi descoberto. Os estudos com o lítio, segundo Ruffalo, precederam os primeiros fármacos usados em psiquiatria.
O instrutor conta que as taxas de prescrição do lítio são baixas nos EUA em comparação com outros países, o que ele atribui, em grande parte, à falta de interesse econômico: "O lítio é muito barato, mesmo para quem não tem seguro saúde. Como as farmacêuticas nunca puderam patentear o lítio, elas nunca investiram em marketing [para a droga]; por isso, os médicos, hoje, são muito mais propensos a prescrever antipsicóticos e estabilizadores de humor de segunda geração, altamente propagandeados".
Outra questão apontada por alguns estudos sobre a baixa prescrição nos EUA é que o carbonato de lítio exige conhecimento dos médicos, exames prévios e monitoramento contínuo do paciente. É preciso testar os níveis na substância no sangue do paciente com regularidade, pois qualquer excesso pode ter efeito tóxico, em especial sobre a tireoide ou os rins. Isso sem contar efeitos colaterais como náuseas e tremores, que atrapalham a adesão.
Apesar de todos os riscos, o efeito parece milagroso para alguns pacientes. "Não acredito em Deus, mas acredito no lítio", resume a escritora norte-americana Jaime Lowie, em um dos artigos publicados sobre a luta para controlar os episódios de mania do transtorno diagnosticado aos 16 anos. Jaime tomou o medicamento por mais de duas décadas, mas foi obrigada a parar porque o uso prolongado afetou sua função renal. A impressão que dá, ao ler seus textos, é que nem a ameaça alterou sua admiração pelo lítio. "De fato, eu considerei continuar, mesmo sabendo que acabaria precisando de um transplante de rim", confirma.
No livro "Mental - Lithium, Love, and Losing my Mind" ("Mental - Lítio, Amor e Perdendo a Cabeça", em tradução livre), ela não fala apenas sobre transtorno bipolar, mas também traz informações sobre o elemento por trás do remédio que lhe trouxe estabilidade. Para fazer a pesquisa, consultou médicos, visitou o Salar de Uyuni, na Bolívia (que concentra metade das reservas de lítio do mundo), conheceu fábricas de bateria na América e spas que oferecem banhos em águas com doses extras do mineral. Jaime também lamenta a atual falta de interesse na droga. "Há pesquisas que mostram que o lítio poderia ser útil para demência e Parkinson, mas é muito difícil obter financiamento para testar se isso é verdade ou não porque não há margem de lucro", comenta.
A escritora, hoje, está bem, mas avisa que levou cerca de nove meses tentando diferentes estabilizadores de humor até se adaptar ao atual. Tratamentos psiquiátricos costumam envolver mais de uma droga, por isso é preciso haver um ajuste fino que leve em conta resposta, interações e efeitos colaterais. Encontrar a combinação certa, em parceria com o psiquiatra, sempre leva tempo e exige paciência. Uma alquimia que não deveria ser ameaçada por questões econômicas.